segunda-feira, 20 de agosto de 2007

...

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

(A pensar numa amiga que partiu cruel e prematuramente)

3 comentários:

poetaeusou . . . disse...

*
a partida de um ente querido,
para o lado misterioso, é um hiato,
um intervalo da nossa vida ...
,
in) poetaeusou
*
aceita a relidade,
*

Zé-Viajante disse...

Brilhantes o Poema de José Gomes e atua escolha numa hora de dor.
Bjs

wind disse...

Apesar de lamenar o texto é excelente.
Beijos